sexta-feira, 24 de abril de 2009

"Eles são muitos, mas não sabem voar"

Milene Sodré critica Tomás Chiaverini, autor do livro Festa Infinita. A jornalista afirma no texto "Eles são muitos, mas não sabem voar" que houve distorções em seus diálogos publicados no livro.

"Em uma entrevista do autor para um site de cultura eletrônica a chamada da matéria dizia que Tomás era um bom jornalista, daqueles que vai a fundo nas histórias, e que para fazer Festa Infinita tinha até passado 30 horas num ônibus para conhecer os ravers, 20 dias acompanhando de perto a produção de um festival e, pasmem, tomado ecstasy. Depois disso desisti de vez do livro e entrevistas a respeito."

Eles são muitos, mas não sabem voar

Foi lançado recentemente, pela editora Ediouro, o livro Festa Infinita, o entorpecente mundo das raves, de Tomás Chiaverini. Logo de cara pensei “lá vem mais uma daquelas publicações falando sobre drogas”. Mas o que viria a seguir era pior do que apenas mais uma matéria falando do mesmo tópico de sempre.

O falatório na internet entorno do assunto era tanto que resolvi dar uma olhada em alguns trechos do livro e entrevistas a respeito. Ironia do destino, ou não, deparei de primeira com a tradução de uma conversa minha com Tommy, um dos integrantes de um grupo estrangeiro de sexo explícito, o Fuck For Forest, contratados para um show, em ambiente fechado e restrito para maiores, em uma festa de arte e cultura alternativa, que acontece já há alguns anos na calorosa Bahia.

O jovem escritor começa a transcrição da conversa, analisada e publicada sem autorização, da seguinte forma: “a produtora, com seu inglês abrasileirado (...)”, e mais adiante continua: “Tommy, com seu inglês perfeito (...)”. Ora bolas, o que tem haver se meu inglês tem sotaque ou não, o que importa é que a comunicação seja estabelecida entre ambas as partes, fato que sempre ocorreu nas minhas conversas informais, viagens e trabalhos. Tommy fala inglês fluentemente porque nasceu e cresceu na Europa, ele é o típico viajante, era o mínimo a se esperar, por isso não entendi a necessidade da comparação do autor. A princípio achei um tanto quanto preconceituoso, mas relevei.

A história no livro prossegue, deixo passar mais uma ou duas coisinhas que me parecem estranhas até que chega “o grand finale” onde, catastroficamente, o autor traduz uma idéia minha ao Tommy da seguinte forma: “as pessoas da região são pobres, não tem nem o que comer, como você espera que elas entendam o amor?” Meu Deus! Tudo bem que meu inglês não seja incrível como de Tommy, mas não saber a diferença entre amor e sexo seria demais. Hoje, no Brasil, até uma criança sabe a diferença entre LOVE e SEX. E, de fato, o que disse é que a comunidade local não entenderia free sex (sexo livre).

Passei 15 dias com o grupo antes do show, fora as horas de leitura e pesquisa prévia na internet sobre o trabalho deles, estava cansada de saber que o lance não era fazer amor e sim sexo explícito mesmo, sexo livre, com todo e qualquer um que se dispusesse a participar, tudo em prol da natureza, até por isso eles se definem como um grupo de eco porn (pornô ecológico). Que transcrição infeliz essa. Sem autorização para entrevista, muito menos para publicação, além da falta de fidelidade com as palavras.

Outras pessoas citadas no livro, profissionais respeitados, que trabalham há anos na cena, que geram emprego e renda para centenas de pessoas em seus encontros, me relataram o mesmo problema. O livro é uma festa infinita de transcrições distorcidas e palavras não autorizadas à publicação.

Em uma entrevista do autor para um site de cultura eletrônica a chamada da matéria dizia que Tomás era um bom jornalista, daqueles que vai a fundo nas histórias, e que para fazer Festa Infinita tinha até passado 30 horas num ônibus para conhecer os ravers, 20 dias acompanhando de perto a produção de um festival e, pasmem, tomado ecstasy. Depois disso desisti de vez do livro e entrevistas a respeito.

Para mim é evidente a irrelevância da publicação e imaturidade do autor, tanto pessoal quanto profissional. Falo isso com a qualidade de quem viu de perto o trabalho de Tomás e também como profissional de jornalismo. Não conheço, nem nunca ouvi falar, uma única escola de jornalismo no mundo que ensine a seus alunos que para ser um bom profissional, sério e competente, o jornalista precise viver o que vivem seus entrevistados. Se fosse assim seria essa a profissão mais injusta de todas, um verdadeiro terror.

Imaginem pelo que passaria o pobre jornalista de guerra. Teria ele que atirar bombas e tomar tiros para compreender o tamanho do sofrimento na fronte? Pior, coitado daquele que fosse pautado para desvendar a prostituição nas ruas. Será que “o bom jornalista” precisaria mesmo partir libidinoso às ruas e vender prazeres sexuais para descobrir que ganhar a vida com o corpinho não é nada mole? Claro que não.

Ou seja, Tomás andou horas de ônibus para conhecer no máximo 40 participantes de uma festa que recebe 8 mil pessoas. Cadê a visão de quem foi de carro, de avião, de carona, de bike ou mesmo a pé (acreditem, tem gente que vai a pé). Passou 20 dias com a produção e não conheceu a fundo ninguém, pois até onde sei não tem um produtor da festa em questão que saiba, de fato, quem ele é. Recolheu informações sorrateiramente e ainda conseguiu distorce-las. E o pior (ou mais engraçado, já nem sei mais), tomou ecstasy porque quis. Jornal nenhum do mundo pediria ou o obrigaria seu funcionário a tomar algo para conceder maior veracidade à matéria.

O bom jornalista é aquele que fala com o maior número de pessoas possível a respeito do assunto, gente de diferentes ângulos de observação dentro do ocorrido e, principalmente, diferentes opiniões. Um balanço de todos os relatos captados conduz a linha da reportagem. Essa é a analise proporcional dos fatos que, junto a uma pesquisa prévia sobre o assunto, garante a riqueza da matéria.

Com tanta coisa pra contar mais uma vez a cena eletrônica é divulgada pela ótica das drogas, visão completamente parcial do todo. Logo na capa a referência “entorpecente mundo das raves”, e se isso não é referência eu não sei mais o que pode ser. Quem sabe não terá sido uma bad trip do autor?

Enfim o que quero mesmo é fazer um alerta a todos que curtem e trabalham sério na cena eletrônica. Cuidado! Movimentos de contracultura sempre foram prato cheio para mídia marrom, sensacionalista e superficial, que está aí só para chamar a tenção e ganhar dinheiro.

É preciso sim se divertir, fazer amigos, socializar. É principalmente para isso que as festas existem. Celebre sempre! Porém não se esqueçam que não somos mais cem cabeças na pista. Hoje somos milhares e é preciso se preservar.

Se abra com o seu amigo, com o amigo do seu amigo. Passou disso, até segunda ordem, seja apenas gentil. Tem muita gente estranha chegando de curioso na cena, gente que não sabe o valor do processo coletivo, a riqueza do trabalho em comunidade, gente pensando sempre em benefício próprio.

Em tristes episódios como esse, em que somos alvos do olhar raso dos outros, busco conforto na lembrança de artistas brilhantes como a banda Secos e Molhados que, mesmo em plena ditadura militar, não se calaram e ainda cantaram, em alto e bom som, “eles são muitos, mas não sabem voar".

(*) Milene é produtora cultural e jornalista formada pela Universidade de Brasília.

1 comentários:

dj rushh disse...

massa..
posso te seguir??
gostei do blog e tenho um que vai na mesma direçao, soh nao tenho muito tempo pra ele, mas to começando a achar...

e vou copiar esta matéria, se nao tiver problema...

abraço
folkadelic.blogspot.com

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